Sexta-feira à tarde, mais um dia
de Departamento Jurídico, porém, no meio de semana de provas e com um relatório
de várias páginas a ser feito para conseguir três créditos no programa de
cultura e extensão.
Cheguei mais cedo, por volta do
meio-dia, para que até o final do dia tivesse esse relatório pronto e pudesse
voltar pra casa tranquilo. Não pretendia dar nenhuma orientação a qualquer assistido
já que estava atrasado
com certos afazeres burocráticos. Não foi bem o que
aconteceu.
Não havia muitos estagiários presentes no
dia e havia um número considerável de pessoas aflitas esperando que alguém lhes
desse uma orientação jurídica sobre os problemas mais diversos. Um pouco frustrado,
por estar com o sono atrasado e por perceber que não sairia do DJ antes das 7
da noite de sexta num dia em que não era o meu plantão, acabei pegando não um,
mas dois atendimentos. Afinal, os clientes precisavam de ajuda e se eu poderia
fazê-lo, não tinha o porquê reclamar. Afinal, se você está no DJ está lá
pra ajudar e pronto.
Ambas se referiam a direitos trabalhistas. O primeiro era o caso de uma senhora que deu o nome para que o
sobrinho pudesse abrir empresa. A empresa faliu e estava sendo demandada judicialmente
por empregados. A sentença deu provimento aos funcionários de tal modo que a
velinha teve a sua conta bloqueada judicialmente. Não tinha muito como lhe
ajudar, precisava dar um puxão de orelha no sobrinho desleixado e mandar que
este pagasse já que, a não pelo nome de sócia, ela nada recebia ou participava
na empresa. A orientação foi rápida.
A segunda parecia mais simples e
não pareceu que iria se alongar muito mais que a outra. Era um senhor bem-humorado de Praia Grande, um tanto quanto angustiado na verdade, que queria tão
somente saber o que aconteceu com o processo dele e se ele tinha algum direito
a receber. Peguei o número do processo, entrei no site do Tribunal para fazer a
consulta e constatei que o processo trabalhista iniciado em 1991 foi arquivado
em 1993 com provimento parcial. O meu discurso já se preparara em poucas linhas
de tal modo que previa que poderia voltar pra casa mais cedo.
Ora, pensei, bastava dizer a este
senhor que não tinha mais direito a nada, seja por prescrição, seja por força
da coisa julgada. Bastava dizer que o que ele podia pedir, já foi pedido e se
não o fora, nada mais poderia ser feito. Mas não foi bem assim.
Ao ouvir melhor o cliente,
descobri que o advogado dele nunca o avisou sobre o término do processo e,
inclusive, na semana passada, o cliente ligou para ele que, por sua vez, disse
que o processo estava em andamento em não tinha nenhuma novidade e que,
ademais, poderia dormir sossegado que tudo estava andando em boas mãos.
Fiquei chocado, como eu lhe diria
que o advogado o enganara durante quase 20 anos? Ainda mais quando este pobre
senhor me veio com um sorriso no rosto dizendo que quando ganhasse o processo,
poderia usar o dinheirinho para comprar uma casa ou coisa do tipo?
Estávamos sentados frente a
frente, eu e o pobre senhor de Praia Grande, o que eu iria dizer? Nos segundos
de silêncio em que permaneci estático, brotou em mim uma grande indignação e
uma série de questionamentos. Como pode ter um advogado tão inescrupuloso
mascarar a incompetência, enganando seu cliente? Como é que eu daria essa
notícia tão ruim que, apesar de ter fundamentos jurídicos, é muito mais um
problema de vida?
Disse como pude, despreparado,
mas tive que dizer a má notícia. Sempre tive como lema que mais vale uma
verdade dolorosa que uma mentira alegre. O problema agora era como aplicar este
preceito e anunciar da forma menos arrasadora possível.
Na faculdade nos ensinam a resolver problemas
jurídicos, não a contar más notícias ou a consolar nos momentos difíceis. Não é
uma falha de ensino ou culpa dos professores para que a Representação Discente
possa reclamar mais ainda sobre o ensino jurídico no Brasil. Longe disso,
trata-se de uma lição imprescindível que só a vida ensina, mas que infelizmente
muitos advogados do Largo de São Francisco passarão incólumes. Muitos deles
serão renomados profissionais e atenderão causas tributárias, societárias,
grandes questões de capitais, mas, pouco verão que, em muitos casos, o direito
não se trata só de encontrar o meio mais eficaz para o cliente pagar menos
tributos ou ter o melhor contrato possível. Não enxergarão que o Direito muitas
vezes não trata só dessas relações tão impessoais. Não enxergarão que no fundo
de diversas relações jurídicas há ali um ser humano com problemas dos quais
muitas vezes a solução jurídica não é mais que um alívio para uma podridão às
vezes insanável que é a miséria humana.
Disse, enfim, ao pobre senhor que
não havia mais o que fazer e que o advogado o enganou durante este tempo,
disse-lhe que não poderia fazer nada, mas perguntei, quase como protocolarmente
como parte do discurso de despedida, se poderia fazer alguma coisa. E, apesar
do choro de raiva e do semblante arrasado, ele me disse que sim, que podia
fazer algo mais.
-Pois não, o que posso fazer pelo
senhor?
-Eu queria pelo menos saber o que
aconteceu com o processo, perdi eu sei porque você me esclareceu agora, mas eu
queria saber o porquê eu perdi. Você poderia fazer isso por mim?
Disse-lhe que sim, não havia
problemas. Só precisava que ele me trouxesse o processo, ou melhor, tirasse cópias
deste para que eu pudesse ler e explicar.
Neste momento tomei outro baque
pelo pedido inusitado. Ler o processo? Algo mais do que simples e corriqueiro
para um estudante de direito e, ao mesmo tempo, tão significativo para uma
pessoa humilde como ele que me confessou mal saber ler e escrever e que, para
vir ao Departamento Jurídico, fez questão de cortas as unhas e lavar bem as
mãos cansadas e sujas de graxa por conta do serviço pesado que realizava numa
gráfica. Aliás, significativo também pra
mim.
Naquele momento percebi que não é
a complexidade ou a dificuldade do trabalho que lhe dá o seu valor. Se simples
ou detalhado, não importa, é secundário. Importa mesmo se a ação, não importa
qual seja, tem algum significado a quem a realiza.
E pensar que pela manhã fiz uma
prova com cinco folhas escritas em que, dentre as imensas e trabalhosas
questões, era necessário fazer uma petição defendendo a Comissão da Verdade.
Embasei minha argumentação no direito de Acesso à Justiça que deveria ser
compreendido não só no sentido de poder pleitear algo em juízo, mas como também
o direito de saber a verdade. Um direito das famílias, também vítimas da
ditadura, em saber o que aconteceu com os filhos e parentes desaparecidos. A
prova ficou boa, mas não significou nada pra mim a não da mesquinha ideia de
passar numa matéria difícil. A bem verdade, o que estava acontecendo naquele
momento no Departamento Jurídico valia muito mais.
Pensar que este tipo de problema não
se restringe somente à ditadura e que era um problema muito mais real, ou
melhor, aquele que estava naquele momento na minha frente, fez com que tivesse
um mal estar jurídico.
Não raro passo meus dias na Teses
de Láurea estudando e não raro, quando boto meu pé pra fora daquela antiga entrada
do Largo de São Francisco, sinto que talvez tenha passado meu dia em vão. Ao
ver e sentir aquele cheiro de miséria, sinto que todo aquele estudo, todas
aquelas palavras pomposas de direitos humanos são bonitas, sedutoras, mas pouco
efetivas. O problema não está tão distante como muitos internacionalistas
pensam. Não está só em Haia, Nuremberg, Síria, Sudão ou nos problemas da
ditadura, seja na América Latina, seja no Araguaia. O problema está
literalmente encostado aos muros sólidos e por vezes letárgicos da ilustre
Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.
O pobre senhor ficou de voltar
daqui a duas semanas, tempo para que, como me ele disse, pudesse se recompor do
baque. Ao sair pela porta do Departamento Jurídico XI de Agosto parecia que
tinha, além de ter deixado algumas lágrimas, deixado ali um pouco da sua
alegria natural e da confiança na Justiça. Deixou também, mesmo a contra gosto,
uma lição de vida da qual nunca esquecerei.